Uma característica atribuída ao povo brasileiro é a tolerância religiosa. O caldeirão de culturas que formou o País teria propiciado a convivência harmônica entre os diferentes credos, ao contrário de outras nações onde violentas disputas derramam sangue inocente. Na prática, porém, a realidade é outra. Seguidores das religiões afro-brasileiras sempre conviveram com a desconfiança alheia. Nos últimos tempos, há indícios de que a situação se agravou. Somente no Rio de Janeiro, são contabilizados, por ano, quase 100 casos de agressões morais ou físicas envolvendo intolerância religiosa em relação aos praticantes de umbanda e candomblé. “Em sua maioria esmagadora, os ofensores são membros das igrejas neopentecostais”, afirmou à ISTOÉ Henrique Pêssoa, delegado da 4a DP, no centro da cidade, que há três anos recebeu uma designação especial e pioneira no Brasil para cuidar de casos que envolvem crimes de viés religioso.
“Cada neopentecostal tem a missão de ganhar adeptos, é uma obrigação religiosa, daí o proselitismo. A missão é clara: divulgar e converter”, explica a antropóloga da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Sonia Giacomini, que pesquisa o tema há 20 anos. Ela diz que o intuito de arrebanhar mais e mais fiéis é bastante organizado. “Existe uma certa logística. Por exemplo, uma igreja é instalada onde havia um cinema pornô, pois ali seria uma área especial para fazer uma conversão, cheia de pessoas vulneráveis”, apontou.
O problema é que a busca por fiéis transforma-se, às vezes, em perseguição. Na Ilha do Governador, na zona norte, há denúncias na 4ª DP de representantes de religiões afrobrasileiras contando que terreiros (os locais onde são realizadas as cerimônias de umbanda e candomblé) estavam sendo destruídos e seus líderes escorraçados da Ilha por traficantes evangélicos neopentecostais. “Ali, criamos a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) porque era extremamente necessário”, diz Ivanir dos Santos, membro da comissão. Este e outros 39 casos em todo o País foram denunciados em um relatório produzido pelo grupo que reúne 12 religiões e entregue ao presidente do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, Martin I. Uhomoibai.
Entre as denúncias, está a da Associação da Resistência Cultural Afro-Brasileira Jacutá de Iansã, que não conseguiu abrir conta-corrente na agência Abílio Machado da Caixa Econômica Federal, em Belo Horizonte (MG). Os diretores contam que esperaram quatro meses para receber a seguinte resposta: o banco é livre para abrir conta de quem quiser, e não queria a associação como correntista. Em São Paulo, a Associação Beneficente de Oyá e Ogun acusa a prefeitura de discriminação por ter lacrado sua sede no bairro de Santa Mariana, sob a alegação de desrespeitar o zoneamento. Segundo eles, o desrespeito se deve unicamente ao fato de eles estarem no local. Até na considerada sincrética Salvador (BA), a prefeitura foi denunciada por ter destruído parcialmente o terreiro Oyá Onipo Neto no bairro de Imbuí. No processo, diz que o terreiro era vizinho à propriedade de um funcionário da prefeitura que não gostava da proximidade com o templo. Os três casos ocorreram em 2008 e ainda estão sendo investigados.
No Rio, um dos terreiros mais antigos do País, de 1908, foi derrubado recentemente. Funcionava no município de São Gonçalo, não muito longe da capital, em uma pequenina casa, que foi posta abaixo para a construção de um galpão. A iniciativa da demolição foi do dono do imóvel, o militar Wanderley da Silva, 65 anos, que desconhecia a importância do endereço. O problema, segundo lideranças religiosas regionais, não foi o ato dele e, sim, o da prefeita de São Gonçalo, Maria Aparecida Panisset (PDT), que teria ignorado os pedidos de umbandistas para salvar o local tombando-o. A prefeitura expediu uma nota dizendo que nada poderia fazer porque a casa era particular. Mas outro caso envolvendo a prefeita Maria Aparecida, que é frequentadora da Primeira Igreja Batista Renovada, provoca dúvidas entre os religiosos.
Maria Aparecida estaria forçando a desapropriação de um local onde funciona outro histórico terreiro, o Centro Espírita Caboclo Pena de Ouro. O presidente da Casa, Cristiano Ramos, diz que a explicação oficial é a construção de um Complexo Poliesportivo no local – embora haja um centro esportivo com características semelhantes na região. O caso virou, em abril, uma disputa judicial. “Tentei negociar várias vezes, mas ninguém quis me ouvir”, diz Ramos, que alega não ter recebido informações sobre indenização até agora. Procurada por ISTOÉ, a prefeitura não deu retorno.
Muitas iniciativas para combater a perseguição ainda dependem de apoio governamental. Por exemplo, o tombamento de templos – que são pedidos e não são atendidos pelas prefeituras –, a morosidade na apuração de denúncias de perseguição e a falta de providências contra policiais que se recusam a investigar casos de intolerância. Para o delegado Henrique Pêssoa, saber a abrangência exata desse tipo de crime, que tem pena de um a três anos de reclusão e multa, é quase impossível. Os registros raramente são feitos de maneira correta e, além disso, a lei não costuma ser cumprida. A bancária Elisângela Queiroz descobriu isso na prática. Chamada de “macumbeira safada” por um colega de trabalho, ela procurou uma delegacia, mas recusaram o registro da ocorrência. “Chegaram a me dizer que era apenas uma briguinha”, contou ela.
Pesquisa recente da Fundação Getulio Vargas aponta que 0,35% da população declarou ser praticante de religiões afro-brasileiras. O teólogo Jayro de Jesus acredita que é muito mais e até estima um crescimento de quase 70% no número de terreiros nos últimos 30 anos. “Acho que as pessoas estão sendo segregadas e, por isso, não tiveram a altivez de se autodeclarar nos censos”, afirma. Ele faz parte do grupo que está discutindo o mapeamento dos terreiros existentes no Brasil, com apoio da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. A expectativa é de que os trabalhos comecem no início do próximo ano e durem até 2013. Em um levantamento feito em 2011, foram localizados até agora, somente na região metropolitana do Rio, 847 terreiros. Com os dados obtidos, o próximo passo será a implementação de um Plano Nacional de Proteção Religiosa. Para impedir a propagação de conflitos movidos pela religião, é preciso agir rápido.
Fonte: Revista IstoÉ
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