“Eu usava droga com a minha mãe. Mas, mesmo assim, amo ela”, diz o carioca A., 17 anos. “Queria que ela viesse me ver. Aposto que ia
querer se curar também.” Depois do desabafo, esse adolescente, de corpo franzino e face marcada pelo sofrimento, caiu no choro. Morador da favela de Manguinhos, um dos maiores pontos de venda de crack da capital fluminense, ele costumava passar dias perambulando por outras comunidades e acabava dormindo na rua. Foi assim até ser pego por uma equipe da prefeitura e levado para um abrigo público. A. é um dos 84 menores de idade recolhidos entre 30 de maio – quando uma espécie de “choque de ordem” começou a vigorar na cidade – e a quinta-feira 4. Chamada tecnicamente de “acolhimento compulsório”, essa medida foi determinada pela Justiça, que atendeu a um pedido da promotora Ana Cristina Huth Macedo, do Ministério Público do Estado. Ana Cristina acredita que tirar os dependentes de crack das ruas, mesmo contra a vontade, é a única maneira de tentar salvar a vida deles.
A política carioca é polêmica e tem pautado discussões de grupos que lidam com o público infantojuvenil nas últimas semanas: juristas, médicos, defensores dos direitos humanos. “O administrador público que não fizer nada para proteger crianças e adolescentes que estão nessa situação deve ser considerado negligente”, alega a ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. “Visitei um dos abrigos e vi crianças destruídas pelo crack, com as mãos e os pés queimados, em crise de abstinência.” Maria do Rosário constatou que o programa tem problemas – como a condução imediata dos recolhidos para a delegacia, mesmo sem flagrante delito, a contratação de profissionais que não são ligados ao Sistema Único de Saúde, a falta de planos individuais de atendimento e, também, de avaliações periódicas para analisar as condições de reintegração familiar dos abrigados. Apesar disso, se forem feitos os devidos ajustes, a ministra afirma que a iniciativa pode se tornar um exemplo positivo. “O crack também é uma forma de prisão”, diz Maria do Rosário. “Essas crianças precisam recuperar o direito de viver.”
Depois da implantação do recolhimento compulsório no Rio, a Prefeitura de São Paulo começou a estudar a adoção de um programa semelhante na capital paulista e deputados federais passaram a debater o assunto em Brasília. “Mas não adianta só tirar da rua no período agudo da doença”, afirma o deputado Osmar Terra (PMDB-RS). “O ideal é que haja uma boa rede de suporte à saúde, que as crianças possam voltar para a escola e, se possível, para a família. Caso contrário, sou a favor de que elas fiquem abrigadas até completarem 18 anos.” Terra é autor de um projeto de lei que prevê a internação forçada de crianças e adultos dependentes de drogas. O deputado conta que, em 2007, quando era secretário de Saúde do Rio Grande do Sul, 80% dos internados em hospitais psiquiátricos do Estado por serem dependentes químicos eram viciados em crack e metade dos assassinatos ocorridos em terras gaúchas tinham relação com essa droga.
O crack – uma mistura de pasta básica de coca com substâncias diversas, como bicarbonato de sódio, amônia e água – chegou ao Brasil na década de 90. De lá para cá, o consumo explodiu. De acordo com o Ministério da Saúde, 600 mil brasileiros são viciados na droga. Especialistas menos conservadores calculam que o número chegue a um milhão. O deputado Terra vai mais longe: “A Confederação Nacional dos Municípios está fazendo um levantamento e estima que 1% da população brasileira seja dependente da droga. São quase dois milhões de pessoas.” O crack produz efeitos mais avassaladores do que a cocaína. Por ser uma droga barata, se espalhou com rapidez pelo País. “Comecei com maconha, aos 11 anos. Quando cheguei no crack, não consegui mais parar”, relata L., 17 anos, internada compulsoriamente no Rio de Janeiro. A adolescente, grávida de oito meses, conta que se prostituía e apanhou muito na rua. Exibe as duas mãos furadas à bala. “Foram os traficantes”, lembra. “Me castigaram porque eu roubava na área deles.”
Dramas como esse são comuns em várias partes do Brasil. Para o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador-geral do Programa
de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo, no entanto, o que se propõe no Rio é uma “medida heroica”. Ele garante que, na maior parte dos casos, não é a droga que empurra os usuários para as ruas. É o contrário. É a condição degradante de viver em situação de rua, vulnerável, que faz muitos cidadãos se tornarem dependentes. Embora as autoridades cariocas tenham vendido o projeto que está em curso como um resgate dos viciados em crack, não são apenas os que têm esse perfil que estão sendo recolhidos. Uma porção das crianças e adolescentes foi entregue aos Conselhos Tutelares ou encaminhada para abrigos comuns. “É evidente que se trata de uma política higienista que simplifica o problema”, afirma Luís Fernando Vidal, da Associação Juízes para a Democracia. “Precisamos negar o nosso lado perverso, sequestrar e tirar das nossas vistas aquelas pessoas que nos chocam.”
A juíza Ivone Ferreira Caetano, autora da sentença que determina o acolhimento compulsório, reclama das críticas. “Alguém, por acaso, se manifesta quando um pai que pode pagar uma clínica particular resolve internar seu filho contra a vontade?”, pergunta. “Eu nunca vi. Quando o pai não quer ou não pode, o poder público tem que fazer esse papel.” Rodrigo Bethlen, secretário da Assistência Social do município e que comanda o programa, faz coro. “Eu, sinceramente, acho que essa gente nunca viu uma cracolândia”, diz. “Quero saber que direitos humanos são defendidos nesses lugares.” A Prefeitura do Rio de Janeiro, segundo a ministra Maria do Rosário, não está cometendo ilegalidades, já que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a adoção de medidas como forma de proteção aos menores de idade. “Não fazer é política de desassistência”, afirma o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas. “Um terço dos usuários de crack que têm família morre. Imagine os que não têm! A internação tira a pessoa da situação de risco. Mas, também, se não houver estratégias posteriores para que ela se reabilite socialmente, não adianta. E isso ainda não existe no Brasil.”
Favoráveis ou não à internação compulsória, num ponto os médicos concordam: a internação, tanto a voluntária quanto a forçada, é apenas uma das formas de tratamento. “O importante é descobrir, caso a caso, o que funciona para cada paciente. Para alguns, o acompanhamento ambulatorial é o mais adequado. Para outros, o melhor é passar algum tempo num hospital ou numa comunidade terapêutica”, afirma o psiquiatra Pedro Daniel Katz, diretor técnico do Serviço de Atenção Integral ao Dependente, único hospital público da cidade de São Paulo voltado exclusivamente a viciados em drogas. Nos últimos dois anos, 70 menores de 18 anos em situação de rua foram internados contra a própria vontade na capital paulista. “A dependência química é uma doença multifatorial e as recaídas são comuns. O sucesso do tratamento depende do tempo de acompanhamento e da reintegração social do paciente”, relata Katz. “Estudos mostram que, nos Estados Unidos, quando esse acompanhamento é feito durante dois anos ou mais, o índice de sucesso pode chegar a 65%. O foco apenas na internação, isoladamente, não funciona. É jogar o problema para debaixo do tapete.”
NOTA: Confira vídeo produzido pela Revista Época com um trecho da reportagem que estará nas bancas no dia 08/08/11 na integra, Confira e ore, mas ore muito, pois esta droga esta cada vez mais infiltrada na sociedade.
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